As bactérias do gênero Fusobacterium são anaeróbios Gram-negativos, comumente encontrados na flora orofaríngea, gastrointestinal e genital humana. Apesar de serem parte da microbiota normal, certas espécies são reconhecidas como patógenos oportunistas associados a infecções graves, incluindo síndrome de Lemierre, abscessos orofaríngeos, sepse e infecções profundas de tecidos.
As duas principais espécies envolvidas em doenças humanas são:
- Fusobacterium nucleatum: relacionado a infecções dentárias e abscessos cervicais.
- Fusobacterium necrophorum: patógeno primário da síndrome de Lemierre, uma septicemia associada à tromboflebite da veia jugular interna.
Microbiologia
As Espécies de Fusobacterium são bastonetes finos com extremidades pontiagudas, podendo apresentar-se pleomórficos. Seu crescimento ocorre em meios anaeróbios como:
- CVE (crystal-violet erythromycin)
- Ágar Brucella com sangue
- Meios enriquecidos com carne picada modificada
Elas se distinguem de Bacteroides e Porphyromonas por sua sensibilidade a colistina e canamicina.
Além de sua patogenicidade relacionada a infecções profundas, a produção de lipopolissacarídeos (LPS) contribui para sua virulência, favorecendo a inflamação e a invasão tecidual.
Manifestações Clínicas
Infecções Orofaríngeas
- Faringotonsilite: similar à causada por estreptococos do grupo A (GAS), mas mais comum em adolescentes e jovens adultos.
- Abscesso periamigdaliano: associado a infecções polimicrobianas.
- Síndrome de Lemierre: evolução grave da faringite para tromboflebite séptica da veia jugular interna.
Síndrome de Lemierre
A síndrome de Lemierre é a complicação mais grave das infecções causadas pelo F. necrophorum. A infecção se inicia na orofaringe e progride para a tromboflebite séptica da veia jugular interna, podendo evoluir para embolização pulmonar séptica.
Manifestações clínicas:
- Faringite inicial (muitas vezes já resolvida no momento do diagnóstico).
- Dor cervical unilateral e edema ao longo da veia jugular.
- Febre alta e leucocitose.
- Embolização pulmonar: infiltrados pulmonares nodulares e cavitação.
Diagnóstico
- Hemoculturas: frequentemente positivas se coletadas antes da antibioticoterapia.
- TC com contraste/MRI: confirma trombose da veia jugular interna.
- Rx de tórax/TC de tórax: revela embolia séptica pulmonar.
Outras Infecções
- Bacteremia: geralmente monomicrobiana, pode ocorrer após procedimentos dentários.
- Abscessos cervicais e cerebrais: infecções polimicrobianas associadas.
- Otite média aguda e mastoidite: descritas em crianças.
- Endocardite: rara, mas possível.
- Infecções intra-abdominais: abscessos hepáticos e trombose da veia porta.
- Infecções pulmonares: abscessos e embolia pulmonar séptica.
- Infecções genitais: endometrite e abscessos vulvares.
Tratamento
A escolha antibiótica deve considerar a produção de β-lactamase por algumas cepas, tornando necessário o uso de inibidores de β-lactamase ou antibióticos alternativos.
Síndrome de Lemierre
Opções preferenciais:
- Ampicilina/sulbactam: 3 g IV a cada 6 horas.
- Piperacilina/tazobactam: 3,375 g IV a cada 6 horas.
- Penicilina G: 3 milhões UI IV a cada 4 horas (se sensível).
Alternativas:
- Clindamicina: 600 mg IV a cada 8 horas.
- Carbapenêmicos (ertapenem, meropenem).
- Metronidazol: útil, mas há relatos de resistência ocasional.
Duração: 3-6 semanas, dependendo da evolução clínica. A conversão para via oral pode ser feita quando o paciente estabilizar.
Opções orais após estabilização:
- Amoxicilina/clavulanato: 875 mg VO 2x/dia.
- Clindamicina: 300 mg VO 3x/dia.
Tratamento adjunto:
- Anticoagulação: controverso, indicado se houver progressão do trombo.
- Cirurgia: drenagem pode ser necessária em casos de abscessos extensos.
Faringotonsilite
O uso de antibióticos para Fusobacterium em faringites ainda é debatido, já que a maioria das faringites tem etiologia viral. No entanto, considerando a associação com síndrome de Lemierre, recomenda-se tratar pacientes com pontuação de Centor ≥ 3 (febre, linfadenopatia cervical anterior, ausência de tosse, exsudato amigdaliano).
Infecções Profundas
Para abscessos cerebrais, hepáticos e articulares, a duração do tratamento segue a abordagem específica para cada localização anatômica.
Prognóstico e Complicações
Apesar da predominância em populações jovens, a mortalidade da síndrome de Lemierre pode variar entre 5–18%. As complicações incluem:
- Abscessos pulmonares e cerebrais.
- Sepse fulminante.
- Embolia pulmonar.
- Disseminação metastática da infecção (osteomielite, artrite séptica, abscessos hepáticos e esplênicos).
Considerações Finais
As infecções causadas por Fusobacterium são frequentemente graves e subdiagnosticadas. A síndrome de Lemierre deve ser considerada em qualquer jovem previamente saudável com febre persistente, dor cervical e sintomas respiratórios.
A escolha do antibiótico deve incluir cobertura para anaeróbios e considerar a produção de β-lactamase. A identificação precoce e o início rápido da antibioticoterapia são fundamentais para reduzir a morbidade e mortalidade associadas.
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Referências
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